Em novembro de 2020, começou a valer a nova concessão por 15 anos para operação da Zona Azul Digital na capital paulista.
A empresa Estapar passou a gerenciar as 50.712 vagas de estacionamento rotativo na cidade[1], após vencer a licitação.
A Zona Azul Digital nada mais é que um sistema de gerenciamento de estacionamento rotativo, onde deve ser obedecida regras para estacionamento de veículos em via pública, uma das regras consiste no pagamento de uma tarifa para que o veículo fique estacionado por um tempo limite em determinado local.
A Resolução nº 302 de 2008 do Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN, regulamenta as áreas de estacionamento específicos de veículos, e no artigo 2º inciso VI define o que vem a ser o estacionamento rotativo:
Art. 2º Para efeito desta Resolução são definidas as seguintes áreas de estacionamentos específicos:
(...)
VI – Área de estacionamento rotativo é a parte da via sinalizada para o estacionamento de veículos, gratuito ou pago, regulamentado para um período determinado pelo órgão ou entidade com circunscrição sobre a via.[2]
O objetivo deste regramento em suma não é arrecadar dinheiro com o estacionamento, ou não deveria ser essa a ideia, mas sim impedir que um veículo fique estacionado em determinado local por longo período.
Para que os veículos fiquem estacionados regularmente nestas áreas onde é determinado o pagamento da tarifa, a capital paulista adotou o cartão Zona Azul Digital.
Hoje a disponibilização e pagamento do Cartão Zona Azul Digital - CAD é realizada através de um aplicativo criado e administrado pela empresa Estapar[3], o motorista ao estacionar seu veículo em via pública onde exista sinalização de estacionamento com a mensagem: “OBRIGATÓRIO CARTÃO AZUL”, deve através do aplicativo acionar o uso do CAD.
É permitido o uso de 1 ou no máximo 2 CADs, para permanecer estacionado na mesma vaga, o tempo de validade pode ser 30 minutos, 1 hora, 2 horas ou 3 horas, de acordo com a sinalização existente no local. A regra geral é que 1 CAD para 1 hora e 2 CADs para 2 horas.[4]
A fiscalização é realizada, ou pelo menos deveria, por agentes de trânsito do município (servidor público), que através de um sistema digital consulta se o veículo tem ou não permissão para estacionar naquele local.
Aqueles que estacionam o veículo em desobediência às regras (sem acionar o cartão ou que extrapolam o tempo de uso), estão sujeitos a autuação por infração grave (5 pontos) com valor pecuniário de R$ 195,23 e remoção do veículo, conforme prevê o artigo 181 inciso XVII do CTB:
Art. 181 Estacionar o veículo:
(...)
XVII – em desacordo com as condições regulamentadas especificamente pela sinalização (placa - estacionamento regulamentado):
Infração - grave.
Penalidade - multa.
Medida administrativa - remoção do veículo.[5]
No segundo semestre de 2018 a Companhia de Engenharia e Tráfego - CET, iniciou os testes para a fiscalização e monitoramento eletrônico da Zona Azul. Um veículo equipado com câmeras passou a circular nas ruas do centro da capital paulista, munido de um sistema que analisava os veículos estacionados em locais em que o uso do cartão de Zona Azul era obrigatório.
Com 6 câmeras acopladas munidas de leitor óptico OCR (Optical Character Recognition), o mesmo sistema utilizado em radares eletrônicos, ferramenta que permite a conversão de imagens em caracteres pesquisáveis e editáveis[6], ao passar pelo veículo estacionado irregularmente o sistema apontava a irregularidade.
E em novembro de 2020 junto à implantação por parte da Estapar da Zona Azul Digital, esses veículos passaram a operar ostensivamente na cidade de São Paulo, fiscalizando e monitorando mais de 50 mil vagas de estacionamento rotativo.
O veículo equipado com as câmeras munidas da ferramenta OCR transmite em tempo real para a CET. Ao passar pela segunda vez no local (cumprindo um intervalo mínimo de 15 minutos), o sistema analisa se o veículo está estacionado com ou sem o Cartão Azul Digital - CAD acionado.
Porém, o equipamento com a ferramenta adotado pela CET para esse tipo de fiscalização carece da falta de regulamentação, e o que isso significa?
O Código de Trânsito Brasileiro - CTB, prevê em seu artigo 280 §2º, que infrações podem ser lavradas das seguintes formas:
? por declaração da autoridade de trânsito ou de seu agente;
? por aparelho eletrônico ou equipamento audiovisual;
? por reações químicas;
? ou qualquer meio tecnológico REGULAMENTADO pelo Contran.
Art. 280 Ocorrendo a infração prevista na legislação de trânsito, lavrar-se-á auto de infração, do qual constará:
(...)
§ 2º – A infração deverá ser comprovada por declaração da autoridade de trânsito ou do agente de trânsito, por aparelho eletrônico ou por equipamento audiovisual, reações químicas ou qualquer outro meio tecnologicamente disponível, previamente REGULAMENTADO pelo Contran.[7]
Interpretando o texto legal, percebe-se que o legislador condicionou a lavratura de uma infração por qualquer equipamento desde que previamente regulamentado pelo Contran.
Em outras palavras, para que o auto de infração de trânsito - AIT lavrado por aparelho eletrônico seja válido, é necessário que haja norma regulamentadora prévia, e atualmente esta norma não existe.
A regulamentação que hoje existe é a para aplicação de infrações por Videomonitoramento, Resolução nº 471/2013 (estradas e rodovias) e Resolução nº 532/2015 (vias urbanas), que consiste na lavratura da infração por um Agente de Trânsito com base nas imagens de via pública devidamente sinalizada.
Art. 3º A fiscalização de trânsito mediante sistema de videomonitoramento somente poderá ser realizada nas vias que estejam devidamente sinalizadas para esse fim.[8]
Resumindo, para que as infrações em vias fiscalizadas por câmeras sejam válidas é preciso:
? que a infração seja captada por sistema de câmeras em tempo real;
? que o agente de trânsito esteja realizando o monitoramento remotamente;
? que a via fiscalizada disponha de sinalização adequada: “FISCALIZAÇÃO DE TRÂNSITO POR VÍDEO MONITORAMENTO”.
Mas como mencionado anteriormente, não é a via que dispõe de câmeras, e sim os veículos, além disso a constatação é feita pela leitura eletrônica de placas (OCR), e não por monitoramento remoto, portanto, ILEGAL.
Mas ainda nesse tipo de fiscalização escolhida pelo município de São Paulo para a Zona Azul Digital pode existir mais uma ilegalidade, a incompetência legal de quem opera os equipamentos. Isso porque em reportagem veiculada pelo jornal Gazeta de São Paulo em dezembro de 2020 pelo jornalista Bruno Hoffmann[9], foi atribuída a empresa Estapar a informação de que seriam seus funcionários a conduzir os veículos e operar os equipamentos na fiscalização.
Trecho da reportagem:
“Segundo a Estapar, os carros equipados com câmeras e GPS para leitura de placas que estão circulando pelas ruas de São Paulo vão supervisionar apenas o uso das vagas da Nova Zona Azul da cidade, sem vistoriar qualquer outra possível irregularidade dos veículos. Eles farão o controle do tempo de permanência e ativação do Cartão Azul Digital (CAD), podendo aplicar multas aos proprietários dos veículos que estiverem parados nas vagas sem ativar o CAD. A Estapar não informou quantos carros estão em operação em São Paulo.”
Em outro trecho:
“Dados dos veículos que não cumprirem as regras de uso da zona azul serão transmitidos para uma Central de Informações do poder público para que os órgãos competentes possam aplicar eventuais infrações. As câmeras farão registros de dados estatísticos e imagens dos carros e placas com geolocalização assegurando total transparência e exatidão das informações coletadas, o que aumentará o nível de credibilidade do sistema, sempre respeitando a Lei Geral de Proteção de Dados vigente”, informou a Estapar.
Regressando ao que prescreve o artigo 280 §2º do CTB, percebe-se que o legislador condicionou a autoridade de trânsito e ao agente a prerrogativa na lavratura da infração.
Art. 280 Ocorrendo a infração prevista na legislação de trânsito, lavrar-se-á auto de infração, do qual constará:
(...)
§ 2º – A infração deverá ser comprovada por declaração da autoridade de trânsito ou do agente de trânsito, por aparelho eletrônico ou por equipamento audiovisual, reações químicas ou qualquer outro meio tecnologicamente disponível, previamente REGULAMENTADO pelo Contran.[10]
Confirmando-se a informação trazida pela reportagem é flagrante a ILEGALIDADE nos moldes adotados pelo município em delegar a funcionários de uma empresa privada tal prerrogativa.
Vejamos o que dispõe nossa Constituição Federal no capítulo Da Segurança Pública:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
(...)
§ 10. A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas:
I - compreende a educação, engenharia e FISCALIZAÇÃO DE TRÂNSITO, além de outras atividades previstas em lei, que assegurem ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente; e
II - COMPETE, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos respectivos órgãos ou entidades executivos e seus agentes de trânsito, ESTRUTURADOS EM CARREIRA, na forma da lei.
Entende-se por agentes de trânsito ESTRUTURADOS EM CARREIRA, servidores públicos.
Corroborando esse entendimento o Item 4 da Resolução nº 371/2010 do Contran (Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito - Volume I), que traz a definição de agente de trânsito:
4. AGENTE DA AUTORIDADE DE TRÂNSITO
O agente da autoridade de trânsito competente para lavrar o auto de infração de trânsito (AIT) poderá ser servidor civil, estatutário ou celetista ou, ainda, policial militar designado pela autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via no âmbito de sua competência.
Para que possa exercer suas atribuições como agente da autoridade de trânsito, o servidor ou policial militar deverá ser credenciado, estar devidamente uniformizado, conforme padrão da instituição, e no regularexercício de suas funções.
O uso de veículo, na fiscalização de trânsito, deverá ser feito com os mesmos caracterizados.
O agente de trânsito, ao presenciar o cometimento da infração, lavrará o respectivo auto e aplicará as medidas administrativas cabíveis, sendo vedada a lavratura do AIT por solicitação de terceiros.
A lavratura do AIT é um ato vinculado na forma da Lei, não havendo discricionariedade com relação a sua lavratura, conforme dispõe o artigo 280 do CTB.
O agente de trânsito deve priorizar suas ações no sentido de coibir a prática das infrações de trânsito, porém, uma vez constatada a infração, só existe o dever legal da autuação, devendo tratar a todos com urbanidade e respeito, sem, contudo, omitir-se das providências que a lei lhe determina.[11]
Analisando o texto legal, os fatos trazidos pela reportagens veiculadas e as informações fornecidas pela própria empresa Estapar, é notório tratar-se de fiscalização ilegal, pois não encontra nenhum amparo legal, pois sequer existe regulamentação prévia que admita o uso desse tipo de equipamento.
Além disso, temos fortes indícios de que quem opera os equipamentos não goza de prerrogativa para tal em desconformidade total com as normas existentes.
Dessa forma, não são válidos os autos de infração expedidos por uso / intermédio deste equipamento, devendo ser anulados toda e qualquer autuação por não atendimento parâmetros legais.
[1] Portal CET - http://www.cetsp.com.br/consultas/zona-azul/mapa-zona-azul/mapa-zona-azul.aspx
[2] Código de Trânsito Brasileiro - Lei nº 9.503 de 1997.
[3] Portal Estapar - https://www.estapar.com.br/zona-azul-digital
[4] http://www.cetsp.com.br/consultas/zona-azul/tudo-sobre-zona-azul-digital/regras-para-estacionar-em-areas-de-zona-azul.aspx
[5] Código de Trânsito Brasileiro - Lei nº 9.503 de 1997.
[6] IFRS - https://cta.ifrs.edu.br/ferramentas-ocr-entenda-o-que-sao-como-funcionam-e-qual-sua-relacao-com-a-acessibilidade/
[7] Código de Trânsito Brasileiro - Lei nº 9.503 de 1997.
[8] Resolução nº 471 Contran de 18 de dezembro 2013
[9] https://www.gazetasp.com.br/capital/2020/12/1082468-estapar-explica-funcao-de-carros-que-monitoram-a-zona-azul-na-capital.html
[10] Código de Trânsito Brasileiro - Lei nº 9.503 de 1997.
[11] Manual Brasileiro de Fiscalização - Volume I, Resolução nº 371 Contran de 10 de dezembro 2010.